Editorial de O Estado de S. Paulo (23/10/2020)
Qualquer prova oral de concurso público para a magistratura é muito mais exigente do que a sabatina do desembargador Kassio Nunes Marques feita pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado no dia 21 de outubro. Certamente, são realidades distintas, com requisitos e condições muito diferentes, mas tanto a sabatina como a prova oral de um concurso público devem ser de fato etapas probatórias, nas quais se avalia seriamente o candidato.
No entanto, o Senado parece considerar a sabatina da pessoa indicada pelo presidente da República para o Supremo Tribunal Federal (STF) como uma sessão burocrática, servindo apenas para oficializar o que foi previamente acordado. Vista tantas vezes em ocasiões anteriores, essa acomodação ocorreu novamente no último dia 21. Em vez de ser uma avaliação, a sessão da CCJ do Senado foi uma grande homenagem ao desembargador do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (TRF-1). Mais do que perguntas, abundaram elogios ao candidato.
Tal modo de proceder destoa do que a Constituição prevê para a nomeação dos novos ministros do Supremo. Segundo o texto constitucional, o presidente da República tem a prerrogativa de indicar os novos ministros do STF. Com isso, assegura-se que a composição da mais alta Corte do País reflita, em alguma medida, a vontade e o sentir da população. O eleitor escolhe o presidente da República, que, por sua vez, escolhe os ministros do Supremo. Por exemplo, caso a indicação do presidente contrarie a vontade popular ou descumpra as promessas de campanha, o eleitor tem a possibilidade de puni-lo nas eleições seguintes.
O critério político, no entanto, não é suficiente. Tendo em vista a relevância da missão do Supremo – compete-lhe nada mais nada menos que a defesa da Constituição –, a Assembleia Constituinte estabeleceu duas qualidades indispensáveis para os ministros do STF: notável saber jurídico e reputação ilibada. São requisitos exigentes e devem ser aplicados com todo o rigor. Não faz sentido, por exemplo, que a obtenção de uma cadeira no Supremo seja mais fácil que o ingresso na primeira instância da magistratura.
Para garantir o cumprimento dessas condições, a Constituição conferiu ao Senado a competência de sabatinar a pessoa indicada pelo presidente da República para o Supremo. Trata-se de uma das prerrogativas mais relevantes da Casa, uma vez que a nomeação de um novo ministro do STF tem muitos e duradouros efeitos sobre a vida dos brasileiros e o funcionamento do Estado. Quando o Senado cumpre seu dever de forma protocolar – ou, o que é pior, quando enxerga seu papel na sabatina como mero homologador de acordos políticos previamente costurados –, o País perde a garantia de que o Supremo esteja composto segundo os cânones constitucionais: por 11 ministros de notável saber jurídico e de reputação ilibada.
Antes de o presidente Jair Bolsonaro indicar o sr. Kassio Nunes Marques para o Supremo Tribunal Federal, pouco se sabia sobre o desembargador do TRF-1. O grave mesmo, no entanto, é que se continue sabendo muito pouco sobre ele após todo o rito de aprovação transcorrido no Senado. Ou seja, a sabatina não trouxe nenhum dado novo capaz de atestar o preenchimento dos requisitos constitucionais. A rigor, isso não é nenhum demérito do sr. Kassio Nunes Marques. O demérito é do Senado, que não cumpriu a contento sua tarefa.
No plenário, a indicação de Kassio Nunes Marques obteve 57 votos favoráveis e 10 contrários. Alcançou facilmente, portanto, a maioria absoluta exigida pela Constituição. No entanto, como o Senado não fez sua tarefa de sabatinar seriamente, o País ainda não sabe se os requisitos constitucionais foram preenchidos.
Por ora, sabe-se que a indicação se deu por amizade. “Já tomou muita tubaína comigo”, disse Jair Bolsonaro. Também se sabe que Kassio Nunes Marques conta com amplo apoio no meio político. “É uma grande e oportuna indicação que, com certeza, elevará a nossa Corte superior”, avaliou o senador Renan Calheiros (MDB-AL). A régua da Constituição é um pouco mais alta.