A democracia chilena passou com louvor no duro teste a que foi submetida após mais de um ano de intensa convulsão social. De forma amplamente majoritária, quase 80% dos votantes disseram sim à convocação de uma Assembleia Constituinte, uma reivindicação das ruas e de partidos políticos, que foi incorporada pelo presidente do país, Sebastián Piñera, de centro-direita. Nenhuma força política expressiva se opôs à convocação do plebiscito, o que explica o fato de o comparecimento às urnas ter sido o maior da história, em um país no qual o voto é facultativo.
Difícil falar em perdedores. Entender porque o Chile, um país com indicadores sociais mais robustos do que os nossos e com uma renda per capita superior à 25 mil dólares (a do Brasil é de pouco mais de 16 mil dólares), foi capaz de dar a volta por cima, exige levar em consideração as particularidades da transição da ditadura do general Augusto Pinochet para a democracia. Ela também se deu por meio de um plebiscito.
Na época, a campanha do No a Pinochet empolgou os chilenos por olhar para o futuro, em vez de ficar presa ao passado. Vendeu esperança de um Chile melhor, deixando de lado o rancor, apesar de a ditadura ter torturado 30 mil pessoas e assassinado três mil. Mesmo com a sua derrota, o ditador ditou o prazo e os mecanismos para o retorno à democracia.
A transição teve seu preço. Um deles foi o de manter a Constituição pinochetista de 1980, responsável pelo aprofundamento da desigualdade que foi o pano de fundo das manifestações que incendiaram o país.
A vitória do No só foi possível porque as quatro principais forças políticas – Partido da Democracia Cristã, Partido Socialista, Partido Pela Democracia e Partido Radical Social Democrata – se uniram em uma coligação com o nome de Concertación Democrática. Ela elegeu o primeiro presidente pós ditadura, Patrício Alwyn e se manteve no poder de 1990 a 2010, quando os chilenos acharam que era hora da alternância do poder e elegeram Piñera, um empresário bem sucedido.
Nos anos da Concertación o Chile se desenvolveu e a centro-esquerda teve a prudência de manter os fundamentos que modernizaram a economia, o que levou o país a alcançar o crescimento sustentado. Registre-se, quando Sebastián Piñera assumiu pela primeira vez, também manteve os pilares da política econômica da Concertación e o Chile continuou crescendo.
Esses chilenos são mesmo uns excêntricos. Têm a mania de efetivar a alternância do poder de forma civilizada e seus governos respeitam as conquistas de seus antecessores. Sim, o Chile tem uma direita democrática e uma esquerda com padrões éticos que não aceita a corrupção. E um povo com forte consciência democrática.
Apesar de ter uma renda per capita no patamar de países desenvolvidos segundo critérios da OCDE (organização da qual é membro), o Chile é um país desigual onde a iniciativa privada tem um papel preponderante em serviços básicos como Saúde, Educação e Previdência.
No caso do sistema previdenciário, quem se aposenta recebe de 30% a 40% do seu último salário e a média da aposentadoria é menor do que o salário mínimo. Já na educação, muitas famílias de classe média têm dificuldades para fazer frente às mensalidades do ensino superior.
Esse foi o pano de fundo das manifestações que deixaram o Chile à beira do precipício. O sentimento do “que se van a todos” contaminou as ruas, mas a institucionalidade soube reagir abrindo o canal para o sentimento de mudança. O plebiscito, com a vitória do sim à Assembleia Constituinte, foi o coroamento desse processo.
Outra prova de sabedoria. Uma cláusula determina que tudo que for aprovado na Constituinte terá de ser por maioria de dois terços dos votos. Isto forçará a negociação entre as forças políticas, tornando praticamente impossível a viabilização de tentações populistas que comprometam o crescimento. O Chile nem será estatista nem neoliberalista. Deverá ampliar a rede de proteção social e manter as bases de uma economia aberta e dinâmica.
Uma coisa é admirar o Chile. Outra coisa é copiar sua experiência, como quer o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros.
As transições da ditadura para a democracia se deram de forma distinta nos países do nosso continente. No caso chileno, manteve-se a constituição de Pinochet, embora tenha sido reformada em alguns aspectos. A rigor, o Chile completa a transição agora, após 30 anos do fim da ditadura.
No Brasil o caminho foi outro, a aprovação da Constituição de 1988 marcou o fim da transição, com profundos avanços do ponto de vista social e definindo, ao mesmo tempo, o mecanismo de sua reforma, por meio de emendas constitucionais. A chamada Constituição-Cidadã não é fator de convulsão social, e sim de estabilidade institucional, não havendo razão para se escrever um novo contrato social por meio de uma Assembleia Constituinte.
A não ser que por trás da ideia do líder do governo esteja o desejo inconfesso de retirar direitos consagrados na Carta Magna.
No passado, era a esquerda que tinha o vício de querer implantar mecanicamente modelos de outros países. Agora é a direita bolsonarista que quer fazer o mesmo. Chance zero de dar certo.
Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação. Escreve às 4as feiras no Blog do Noblat.