A crise instaurada no projeto da série que propõe contar a vida da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes – ambos assassinados em uma emboscada no Estácio, região central do Rio, em março de 2018 – foi estancada na tarde desta quinta-feira, 29, pela Rede Globo.
Após o anúncio de uma demissão coletiva no último sábado, a emissora designou duas roteiristas da casa para comandar a direção criativa do projeto: Mariana Jaspe e Maria Camargo vão trabalhar juntas na construção do seriado, ainda sem previsão de estreia na Globoplay, serviço de streaming da emissora.
A série, que está sendo dirigida por José Padilha sob idealização de Antonia Pellegrino, foi alvo de intensa polêmica no seu anúncio em março deste ano porque a cúpula do projeto é branca. Depois de um debate intenso na imprensa e nas redes sociais, uma equipe de sete pessoas – todas elas negras – foi formulada. No último sábado, no entanto, quatro roteiristas negros pediram demissão. A alegação dos profissionais, em sua maioria mulheres, foi relacionada a divergências na condução narrativa sobre a vida de Marielle.
A saída dos profissionais foi o estopim de uma crise que durou alguns dias – e que colocou o projeto sob risco. Segundo VEJA apurou, o desentendimento chegou aos ouvidos do executivo Erick Bretas, responsável pela plataforma de streaming da Globo, na noite de ontem. O chefe da Globoplay agiu rápido e designou a dupla de roteiristas na tarde de hoje.
Mariana e Maria trabalharam no roteiro da série “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves, que irá ao ar em 2021 pela emissora. A escolha da Globo é oportuna porque também se trata de um trabalho que aborda questões raciais a partir da época da escravidão brasileira.
VEJA apurou que a escolha foi recebida bem pelos familiares de Marielle e Anderson.
Procurada pela reportagem, Mariana não quis se manifestar. Em carta aberta, ela declarou que aceitou o roteiro após a polêmica troca porque “nos foi garantida total liberdade de criação e condições reais de autoralidade”.
Veja, abaixo, a íntegra da carta divulgada pela roteirista:
Sobre minha autoria na série sobre Marielle Franco ao lado de Maria Camargo. Fiz parte da sala anterior e meu retorno se deu unicamente por ser junto com Maria – minha mentora, pessoa por quem tenho imenso respeito, amor e, principalmente, por termos uma relação de muita confiança mútua.
Mas, para além do afeto, é preciso ser pragmática: aceitei o desafio porque nos foi garantida total liberdade de criação e condições reais de autoralidade. Chego para ocupar de fato um lugar de liderança criativa – tão fundamental em um projeto como esse.
Conversamos também com a Antifa e o Globoplay e combinamos um processo de troca com muito debate e respeito no relacionamento. Acredito que mais importante que poder dizer sim, é poder dizer não e diremos tantos quanto forem necessários para contar a história de Marielle e Anderson – não escreveremos sobre o que não acreditamos. Meu posicionamento em todas as instâncias é de que não estou aqui para cumprir um papel figurativo – Token só o da senha do banco.
O que eu e Maria nos dispomos a fazer é colocar a mão na massa, confrontar a folha em branco – que é nosso ofício – e trabalhar duro para escrever uma história que não seja apenas poderosa, mas também esteja a serviço do legado de Marielle.
Sua morte é uma ferida ainda aberta e, uma vez que a série irá acontecer, é preciso que o recorte sobre sua vida faça jus a quem ela foi e seguirá sendo. Sei que não será um trabalho simples, mas qual processo criativo é? Desejo muito e coloco toda minha força, intuição, técnica e disposição para que Dona Marinete, Seu Antônio, Luyara, Anielle, Monica e Agatha se sintam respeitadas. E, por se tratar de uma obra de ficção, que uma senhorinha lá no interior da Bahia assista e diga: Eita, que série massa!