Editorial de O Estado de S. Paulo (27/10/2020)
O presidente Jair Bolsonaro participou de uma reunião com duas advogadas de seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro, para discutir supostas irregularidades em relatórios produzidos por órgãos federais de fiscalização a respeito do parlamentar, enrolado no escândalo das rachadinhas. Estiveram no encontro o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, e o diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem.
Mais uma vez, o presidente Bolsonaro trata a Presidência da República e o aparato institucional do Estado como uma extensão de sua casa, usando-os como instrumentos para resolver problemas particulares.
Nunca é demais lembrar: o artigo 37 da Constituição, que o sr. Bolsonaro jurou respeitar e fazer respeitar, diz que o presidente da República, bem como qualquer outro integrante da administração pública, deve se pautar pelo princípio da impessoalidade. Isto é, nenhum funcionário público pode usar o cargo para fins privados – especialmente o presidente da República, por razões óbvias.
O mesmo artigo constitucional diz que outro princípio fundamental da administração pública é o da publicidade, exigência igualmente ignorada pelo presidente Bolsonaro. A reunião com as advogadas do filho Flávio Bolsonaro, realizada no dia 25 de agosto, não constava da agenda oficial nem do presidente nem de seu ministro do GSI.
Não fosse o trabalho da imprensa, portanto, os cidadãos brasileiros seriam privados da informação segundo a qual o presidente da República se reuniu de maneira inapropriada com as advogadas de seu filho e envolveu os chefes do GSI e da Abin, para tratar de assuntos de exclusivo interesse de sua família.
Assim, pouco importa do que foram se queixar as advogadas de Flávio Bolsonaro ao pai deste – que vem a ser o chefe formal dos órgãos federais cujo trabalho é verificar se os cidadãos, como o citado senador, não estão burlando o Fisco. O que interessa é que o presidente as recebeu em sigilo e, segundo o que se sabe, usou seu poder para verificar a possibilidade de atender ao pleito da defesa do filho, envolvendo inclusive o serviço de inteligência federal, sabe-se lá com que propósitos obscuros.
Não é de hoje que o presidente Bolsonaro encara suas questões particulares como se fossem de Estado. No caso mais rumoroso, corre no Supremo Tribunal Federal um inquérito para apurar se Bolsonaro interferiu politicamente na Polícia Federal para favorecer sua encrencada família, segundo acusou o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro.
Também não é de hoje que o senador Flávio Bolsonaro não se defende objetivamente das acusações que sofre, limitando-se a lançar mão de chicanas e manobras protelatórias que tão bem caracterizaram a defesa de muitos dos réus do mensalão e do petrolão, escândalos de triste memória.
Primeiro, o senador moveu montanhas para manter o foro por prerrogativa de função, que não cabia nesse caso. Depois, alegou que o Ministério Público não podia fazer acusações com base em dados oriundos de suposta quebra de sigilo bancário. Agora, sua defesa pretende colocar sob suspeita a produção de relatórios de órgãos de fiscalização que podem comprometê-lo.
Em seu esforço para procrastinar o acerto de contas com a Justiça, o senador Flávio Bolsonaro parece de fato contar com a prestimosa ajuda do pai, que nunca escondeu que seus filhos precedem o interesse público. “Pretendo beneficiar filho meu sim”, já disse o presidente, em outra ocasião, sobre sua disposição de usar o cargo para dar uma forcinha à prole.
E o mais espantoso é que ninguém no entorno de Bolsonaro expressa desconforto com isso. Ao contrário, parece considerar realmente que o Estado que Bolsonaro chefia temporariamente deve estar a serviço dos integrantes da “família presidencial”, expressão que não por acaso consta tanto da nota do ministro Augusto Heleno como da nota do senador a respeito da reunião sobre as supostas irregularidades na Receita – e que é muito mais apropriada a uma monarquia do que a uma república.