Modelo de licitação para liberar emendas prejudica fiscalização, dizem especialistas


SÃO PAULO, SP, E BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Especialistas em licitações criticaram a participação de empresa de fachada e a falta de competitividade em pregões da estatal Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) revelada pela Folha de S.Paulo. Eles também alertaram que o afrouxamento das concorrências de pavimentação da estatal avalizado pelo TCU (Tribunal de Contas da União) prejudica muito a fiscalização das obras.

A Folha de S.Paulo mostrou que a empreiteira maranhense Engefort tem dominado licitações de pavimentação da Codevasf, muitas vezes participando sozinha ou na companhia de uma empresa de fachada registrada em nome do irmão de seus sócios.

Os pregões de pavimentação da Codevasf em 2021 fazem parte de uma manobra licitatória que passou a ser usada em larga escala sob o governo Bolsonaro para dar vazão aos recursos bilionários das emendas parlamentares, distribuídas a deputados e senadores com base em critérios políticos e que dão sustentação ao governo no Congresso.

A estratégia deixa em segundo plano o planejamento, a qualidade e a fiscalização, abrindo margem para serviços precários, desvios, superfaturamentos e corrupção.

Na manobra disseminada pela gestão Bolsonaro, as licitações são realizadas com a utilização de modelos e dados fictícios que valem para estados inteiros. Depois que os locais são escolhidos, em geral pelos padrinhos das emendas parlamentares, as futuras obras é que devem se encaixar nas propostas vencedoras nessas licitações.

A Codevasf, presidida por Marcelo Moreira, é controlada pelo centrão.

A reportagem ouviu especialistas em direito administrativo quanto à falta de competitividade e uso de empresa de fachada registrada em nome do irmão dos sócios da empresa que venceu a maioria dos pregões de pavimentação da Codevasf.

O professor de direito constitucional da PUC-SP Pedro Estevam Serrano alerta para a possibilidade de prejuízo aos cofres públicos em casos de licitações nas quais há poucos participantes ou relações entre eles.

“Na medida em que dentre as empresas que participam são constatadas relações entre os sócios das mesmas empresas, é preciso investigar se não estamos diante de uma fraude ao caráter competitivo, em prejuízo da contratação em condições vantajosas e, no caso dos pregões, do menor preço”, diz.

De acordo com o advogado especialista em licitações e doutorando em direito administrativo Anderson Medeiros Bonfim, as ligações entre empresas que participam de uma concorrência é tão potencialmente perigosa que a nova lei de licitações vai coibir essas situações.

“Corrigindo uma omissão da lei de licitações de 1993, a nova lei, a qual passará a ser cumprida a partir do ano que vem, previu, expressamente, que não poderão disputar licitação, concorrendo entre si, empresas controladoras, controladas ou coligadas”, afirma.

Os especialistas também criticaram a flexibilização das licitações de pavimentação da Codevasf com a chancela do TCU.

O advogado e professor titular de direito administrativo da USP Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto diz que “o procedimento da Codevasf, embora buscando a eficiência na recuperação de vias, é perigoso, inconveniente e ilegal”.

“Licitar e contratar com objetos abertos tem alto risco de gastar mal e em excesso, dificultando a fiscalização. Inconveniente porque pensando em agilizar, tal forma de contratação certamente vai se deparar com problemas de execução pois cada via tem características técnicas distintas que só vão se revelar após o contrato assinado”, continua.

Para o advogado, “a decisão do TCU é um ponto fora da curva na longa jurisprudência da corte em exigir projetos de engenharia consistentes e detalhados e em combater a evasão de recursos públicos por contratos genéricos e modificáveis.”

A advogada e doutora em direito do estado pela USP Mariana Chiesa alerta para os problemas práticos de fiscalização sob o modelo disseminado no governo Bolsonaro.

Segundo ela, o início das licitações “pressupõe a definição de quantidades e requisitos técnicos, guardando coerências com as localidades em que as obras serão executadas. Sem esse diagnóstico prévio, não é possível entender o tamanho do trabalho envolvido e, por sua vez, quantificá-lo economicamente”.

“Tendo essa falha de partida, é muito mais difícil medir a execução e fiscalizá-lo. Como saber se as quantidades utilizadas foram aquelas efetivamente necessárias para a intervenção? Uma dinâmica que pode abrir margem para fraudes”, diz a especialista.

“O tribunal [TCU] criou uma solução que desvirtua a inteligência do modelo e que não encontra fundamento na legislação, gerando insegurança jurídica para o poder público”, completa a advogada.

Já a advogada especializada em licitações Luciana Berardi não critica as posições da Codevasf e do TCU e diz elas privilegiaram o interesse público.

“Foi uma saída que a Codevasf encontrou para executar as emendas que chegam ao final do ano e que acabavam se perdendo. Quem perdia eram as populações locais que necessitavam das obras. É uma medida mais ético-política do que qualquer coisa, e não é ilegal”.

A especialista diz que a legalidade decorre de uma interpretação a partir da lei das estatais, que não proíbe o uso de pregões por empresas públicas como a Codevasf.

Mas ela também alerta para o risco de prejuízo às fiscalizações. “Os próprios ministros do TCU fizeram recomendações para que as ações de controle sejam mais cuidadosas. Na verdade é a fiscalização que será o fiel da balança para a boa execução dos contratos”, disse.

Um ministro do TCU (Tribunal de Contas da União) resumiu o mecanismo, que, segundo ele, “inverte a lógica clássica” de inicialmente realizar um projeto específico para uma via já escolhida e aí sim, em seguida, fazer uma cotação de preços com base em uma situação real.

A própria estatal admite que o expediente tem como objetivo acomodar a crescente injeção de verbas de emendas parlamentares.

O modelo adotado por Bolsonaro para atender ao centrão foi ampliado após o plenário do TCU ter dado aval à prática em meados do ano passado, apesar dos alertas de sua própria área técnica e também da CGU (Controladoria-Geral da União).

Com a liberação dos ministros do TCU, o número de licitações desse tipo na Codevasf saltou de 29 em 2020 para 99 no ano passado, um aumento de 240%.

Codevasf diz que falta de competição em pregões decorre de situações do mercado Em nota, a Codevasf afirmou que empresas de todo o país podem participar dos pregões e que cabe a elas avaliarem se vale ou não apresentar uma proposta. A companhia afirmou que a baixa concorrência em uma disputa ocorre por questões de mercado.

Também declarou não ter contratos com a Del Construtora Ltda, firma de fachada usada pela Engefort para vencer concorrências, e afirmou que cada empresa deve “responder diretamente por seus atos e procedimentos.”

A estatal disse que tem controle integral sobre suas obras, investimentos e procedimentos e que estes dados são aprovados pelos conselhos da Codevasf e avaliados em auditorias. Disse também que atua em cooperação com órgãos de fiscalização e controle, como a CGU.

O órgão também negou que o afrouxamento dos processos de licitações e disse que notifica empresas por obras com inconformidades. A empresa disse que busca promover economia, ampla concorrência e celeridade no atendimento às demandas regionais ao escolher o modelo flexibilizado.



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